A Beleza que Escapa ao Controle
Entre fungos, memória e ética: por que a BioArte me parece uma das linguagens mais potentes do nosso tempo.
Acho que quem se interessa genuinamente por arte — e está sempre em busca de novas expressões e formas de interpretar o tempo — começa a perceber que a chamada arte histórica (aquela que está nos museus, que usamos como referência para falar de uma época) é, acima de tudo, a expressão de um tempo específico. Já a arte feita na contemporaneidade — isto é, aquela que está sendo produzida agora (não necessariamente a chamada "arte contemporânea" enquanto categoria histórica) — ainda está em processo de se provar. Dificilmente conseguimos, no presente, afirmar com certeza o que será reconhecido como uma expressão genuína, daquelas que atravessam o presente e entram para a história. Só o tempo dirá.
Mas isso não é um problema. Aliás, está longe de ser: é justamente aí que reside o prazer — o de viver a arte no presente, experimentar, arriscar, tentar. Se gêneros como rap, funk ou hip-hop terão, no futuro, o mesmo peso histórico que a música clássica; se a Anitta será lembrada com a mesma reverência que um Beethoven; se o Banksy será citado nas escolas de arte com o mesmo peso de um Duchamp — não sabemos. Talvez alguns mais puristas que estejam lendo isso já tenham vontade de fechar o texto agora, mas calma: é só uma provocação baseada em hipóteses.
Partindo desse pensamento, me interesso cada vez mais por linguagens realmente novas. E uma das fronteiras que tenho explorado — e que tem me encantado — é a da BioArte.
Diferente da EcoArte, que também é riquíssima e costuma alertar sobre questões ambientais como forma de crítica, a BioArte me atrai por outro motivo. Ela investiga como a ação de seres vivos — organismos, animais, microrganismos — pode participar ativamente da criação de uma obra. Enquanto a EcoArte tem uma função direta e um discurso sustentável bem definido, a BioArte me parece mais livre, mais voltada à experimentação pura.
Ela se sustenta em um tripé que considero fascinante: o elemento vivo, a tecnologia que viabiliza o processo, e a reflexão ética que surge inevitavelmente quando se trabalha com vida.
Talvez, desses três pilares, o mais urgente para mim seja o da ética. Quando se lida com organismos vivos — mesmo os mais simples —, esse aspecto se torna incontornável. Por isso, prefiro deixar de lado alguns trabalhos que utilizam animais inteiros e que, na minha visão, às vezes beiram o espetáculo grotesco, e focar em exemplos que provocam de forma mais sutil e consciente.
Um caso que me marcou foi o projeto Victimless Leather, dos australianos Oron Catts e Ionat Zurr. Eles desenvolveram um minicasaco feito com células cultivadas em laboratório — uma peça literalmente "viva". Exibido no MoMA, a obra propõe um futuro possível na moda sem o abate de animais, mas também nos obriga a pensar: mesmo sem dor, sem consciência, até que ponto o uso de vida — mesmo celular — é justificável? É um exemplo potente de como a BioArte pode fazer a gente repensar hábitos e fronteiras éticas sem cair no lugar comum da denúncia óbvia.
No Brasil, um trabalho que me chamou muito a atenção foi o da fotógrafa Roberta Stamato. Embora brasileira, seu trabalho tem ganhado mais visibilidade no exterior — especialmente na Itália, onde ela estudou e desenvolveu parte importante de sua pesquisa. Um dos trabalhos que ela realiza utiliza micro-organismos vivos — como fungos e bactérias — para interferir diretamente em fotografias de acervo ou fotografadas por ela. E o que torna essa abordagem ainda mais impactante é que, em alguns casos, ela usa imagens originais — como retratos antigos de seus avós — e não cópias. Ao deixar que esses organismos vivos atuem sobre essas fotografias, ela provoca uma transformação visual impressionante. O resultado é de uma estética belíssima e, ao mesmo tempo, profundamente simbólica. Para mim, seu trabalho gera uma reflexão potente sobre o tempo, a memória e a fragilidade do passado. Há algo de nostálgico, poético e inquietante ao ver uma imagem que carrega valor afetivo ser invadida por organismos vivos — como se a própria natureza, sem pedir licença, reescrevesse nossa história emocional.

Mas por que esse tipo de arte, hoje em dia, faz tanto sentido ?
Talvez porque vivemos numa época em que a tecnologia se tornou o filtro de quase tudo. Isso não vale apenas para a arte, mas para a própria experiência da vida. Textos saem sem erros, músicas são montadas digitalmente com perfeição, imagens são tratadas até parecerem irreais. A vida cotidiana — e tudo que dela deriva — parece cada vez mais pasteurizada, como se qualquer ruído ou imperfeição precisasse ser eliminado.
Essa lógica acaba respingando também na arte. É nesse contexto que a BioArte representa, para mim, uma espécie de transgressão. Ela reintroduz o acaso real.
Quando uma obra é alterada por bactérias, ou parcialmente consumida por um organismo, ela se torna imprevisível — mesmo que o artista mantenha um grau mínimo de controle. Essa imprevisibilidade devolve à obra um tipo de autenticidade raro hoje em dia. O erro ali não é simulado. O acaso não é um efeito. É vida agindo. E isso torna cada peça única, irrepetível.
Como processo, é um campo provocador. E como arte, quando há por trás uma intenção sincera, esse componente biológico do acaso potencializa o discurso. E talvez seja justamente aí que está a beleza: no encontro entre o que se pode planejar... e o que só a vida pode decidir.