Entre o Concreto e o Invisível
Por que alguns vídeos de arquitetura vivem — e outros só mostram arquitetos ajeitando almofadas e abrindo portas de correr?
O que mais me encanta, disparado, é fazer filmes de arquitetura que consigam atravessar a superfície — filmes que documentam histórias, ideias, escolhas, dilemas. Filmes que se sustentem como documentários reais. Filmes com potência.
Só que a verdade é que nem sempre esse tipo de projeto é viável. Seja por falta de orçamento, de tempo, ou de (principalmente) entendimento por parte do cliente, ou coragem de alguem peitar a produzir/dirigir um filme “pouco comercial”.
O que temos na maioria das vezes — e isso vale pra mim e pra praticamente qualquer produtora que trabalha com audiovisual arquitetônico — são os chamados “vídeos de arquitetura”. E esses vídeos ocupam hoje o dia a dia de quem atua nesse setor — seja institucional, corporativo ou ligado a escritórios.
E tudo bem. Não é uma crítica. Mas é aí que entra a pergunta que me move: qual é a narrativa que estamos criando? Como vamos contar essa história? ou o principal: qual é “a história”?
O primeiro grande dilema, é o ponto de partida: quem é o personagem principal desta história?
Essa escolha define o caminho que vamos percorrer. Em um filme de arquitetura, ela geralmente segue por um de dois caminhos: ou o protagonista é o projeto — uma casa, um edifício, uma cidade — ou o protagonista é o criador — um arquiteto, uma equipe, alguém com uma história por trás daquela obra. (pode ser também o morador, mas se ele é o “morador” normalmente já é secundário, pois já fica estabelecido a relação dele com o projeto.)
Quando o personagem é o projeto em si, a narrativa tende a ser mais objetiva. Estamos lidando com o concreto — no sentido literal e figurado. Se é alto, baixo, claro, escuro. Feio ou bonito, simples ou sofisticado. Podemos até cair na tentação publicitária de humanizar o inanimado, de dar alma a uma parede, de fazer a porta parecer ter sentimentos. Mas ainda assim estamos lidando com um objeto. E isso facilita muito as coisas.
É diferente quando o personagem é o criador.
Aí, entramos num terreno completamente diferente. O da subjetividade. O da contradição. O das crises, das brechas, dos conflitos internos — que, muitas vezes, foram exatamente os elementos que pariram aquele projeto. E aí a história muda. Porque esse campo é mais fértil, sim. Mais interessante, mais intenso. Mas também mais arriscado.
Só que o verdadeiro desafio aparece mesmo quando a gente decide tratar tudo isso como narrativa.
A gente vive num tempo em que até a ideia de narrativa está em crise. E eu não tô falando só dos vídeos de arquitetura. Tô falando de tudo. Das nossas conversas, dos nossos posts, das nossas relações.
Li um livro que me ajudou muito a entender isso: A crise da narração, do filósofo contemporâneo de origem coreana Byung-Chul Han. Ali ele explica como, desde os tempos das pinturas rupestres até o início da Era Moderna, as narrativas tinham como principal função contar histórias de vivências. Acontecia algo marcante, e aquilo virava história — transmitida de geração em geração, seja oralmente, visualmente ou simbolicamente.
Mas, com o advento do marketing, da indústria e da necessidade de se construir marcas, nasce o branding. E com ele, seu braço narrativo: o storytelling. Aliás, nadamos em um mar de storytellings. Em todos os momentos. Em todas as situações da vida, de tal forma que normalizamos isso, esse é o problema, a mentira vai virando uma verdade marqueteiramente aceita. quer um exemplo?
Quando saimos à noite, despretensiosamente, pra jantar num restaurante, querendo um momento de paz, um silêncio, um sabor.Mas não. Lá vem o storytelling:
O prato principal, de repente, não é só um prato. É uma herança afetiva da avó do chef. E essa avó — italiana, húngara, judia, congolesa, de Belém do Pará, do interior de Goiás ou do Raio Queoparta — deixou uma receita no leito de morte. Escreveu num papelzinho amassado, entregou na mão do neto e falou: “Divulgue essa receita para o mundo.” Um verdadeiro manifesto.
Aí a receita virou o prato principal do restaurante. O nome da avó virou o nome do restaurante. O garçom conta essa história emocionado. Você come o prato quase chorando.
Conto isso com uma certa ironia — porque não dá pra levar a sério. (O problema é que tem gente que leva.) Mas esse tipo de construção forçada é perdoada dentro do meio publicitário. Faz parte do jogo. Isto é, faz parte do jogo do storytelling. É o famoso “me engana que eu gosto.”
Voltando ao livro, Han diz que essa lógica criada para vender produtos — essa história forjada pra dar alma a algo que, originalmente, não tinha alma — acabou se espalhando pra tudo. Hoje, as pessoas também criam suas próprias narrativas com base nesse modelo. Apropriam-se de histórias alheias que parecem convenientes aos seus desejos ou dores, e constroem identidades como se estivessem criando marcas pessoais.
E isso, somado a uma vida cada vez com menos tempo, menos ócio, e menos espaço para o conflito real, acabou sufocando nossa capacidade de contar nossas próprias histórias com verdade. De uma forma mais limpa, mais crua, menos ensaiada.
E quando eu falo em verdade, é importante dizer: não é sobre “não mentir”. Essa verossimilhança já é pressuposta. O que eu estou falando aqui é daquela verdade profunda, que só aquela história tem. Aquela fresta de ineditismo que nasce dos conflitos reais — ou do mais próximo disso que se pode captar — e que toca sinceramente a pessoa que criou.
Aquela dificuldade de contar nossas histórias com verdade não está presente só na vida cotidiana. Ela também aparece — e com força — no modo como os filmes vêm sendo feitos. Especialmente quando falamos de vídeos ligados à arquitetura ou à publicidade, essa ausência de conflito real, de autenticidade, se reflete diretamente na narrativa. E é aí que voltamos ao ponto central: quando uma história tem verdade?
Raramente encontramos aquela verdade que tem potência pra mudar o próprio roteiro do filme, pra evitar um final óbvio, pra gerar tensão. Que desvia dos clichês publicitários e incomoda justamente por ser verdadeira. Porque sai da receita pronta.
Porque o que a gente mais vê por aí é o oposto disso. Vídeos com estrutura de bolo pronto. Com storytelling de prateleira. A narrativa publicitária sempre carrega a mesma lógica: passa por uma jornada segura e previsível, e termina com a glorificação de um projeto incrível ou de uma pessoa genial. O famoso “ meu estilo é o estilo do cliente” ou “eu me realizo vendo o cliente feliz, na casa que sempre sonhou”, ou quando material é corporativo, o esforço roteirístico, tentando mostrar que a “empresa tem valores humanos reais, e luta por um mundo mais justo e sustentável com mais qualidade de vida para os colaboradores”, humanizando empresas e agregando valores.
Todos os ingredientes estão lá. Farinha, ovos, fermento. Só muda o topping. E no final, mesmo formato, mesma forma, mesmo forno.
São narrativas fracas, justamente porque são sempre as mesmas, e claro, são receitas.
Mas e se, em vez disso, a gente conseguisse colocar ali dentro uma faísca de vida?
Porque eu acredito que o que torna um conteúdo relevante não é o número de curtidas ou views que ele gera (mesmo porque isso dá para ser impulsionado) mas o impacto, a relevância. As conexões que ele provoca. O lugar invisível que ele toca nas pessoas.
E esse lugar, na maioria das vezes, nasce de algo que a gente não consegue nomear direito. Uma pequena faísca de verdade, mesmo que ela venha acompanhada de uma “falha tecnica” como uma gaguejada. Um silêncio. Um gesto torto. Uma falha de roteiro que, por algum motivo, ficou, como é na vedade a própria vida.
E quando falo de “vida” aqui, não é da vida biológica. Mas daquela outra. Aquela que pulsa quando a gente percebe que algo é verdadeiro. Quando tem um questionamento existencial por trás, um ato falho ou uma emoção não prevista. Quando tem uma brecha aberta que mostra que quem criou aquele projeto também é gente como eu e você.
É engraçado, porque muitas vezes, a parte mais revolucionária de um projeto nasce de uma crise. De um dilema mal resolvido. De uma dor que virou solução, que muitas vezes o arquiteto nem quer falar, pois pode não ser “instagramável”, tipo uma solução de outro projeto que coube como uma luva, ou um insight que veio do novo estagiário que fez um golaço proponto inverter a orientação da casa, ou de um filme que o arquiteto viu a noite … E quando a gente suprime isso da narrativa — seja por medo, pressa ou vaidade — o que sobra é só estética. É o gesto repetido, falas previsíveis com as cenas clichês da arquiteta ajeitando a almofada, ou o arquiteto abrindo a porta de correr.
Como se eles tivessem estudado anos para finalmente saberem como ajeitar uma almofada da forma correta. Ou treinado a vida inteira pra encontrarem a velocidade adequada pra abrir uma porta de correr.
É o Ctrl C Ctrl V dos vídeos de arquitetura. O “empratamento” do video.
Ae propor a contar uma história com verdade é mais difícil. Mas é aí que mora a potência.
É claro que isso também exige coragem — não só de quem dirige, produz ou edita, mas de quem aprova o projeto, de quem assina, de quem banca. Porque o caminho da subjetividade é incômodo. Não tem fórmula. Não é previsível. Porque não tá ali nescessariamente “para agradar”, segue outra lógica.
E, se for real, vai tocar alguém. Quando isso acontece, booom! tudo já valeu a pena.
No fim das contas, talvez a grande diferença entre um vídeo bonito e um vídeo inesquecível esteja nessa escolha: o que se vai mostrar o que já se espera ver — ou vai ter coragem de mostrar algo que ainda não foi visto? Vai repetir o que já existe — ou vai tentar escutar o que o nosso próprio processo criativo tem a nos dizer?
Talvez esse seja o papel mais bonito de quem trabalha com criação: criar pontes entre o mundo exterior e os nossos mundos internos. E ter humildade o suficiente pra entender que a única coisa que realmente importa — no meio de tanta simulação — é o que ainda é vivo.
E o que é vivo, mesmo que sutil, mesmo que pequeno, sempre sobrevive.